CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DE CIÊNCIAS

Milton Antonio Auth - Doutorando do PPGE - UFSC
1
José André P. Angotti - Departamento de Metodologia de Ensino e PPGE - CED/ UFSC
2

Centro de Ciências da Educação/UFSC
Departamento de Metodologia de Ensino e Programa de Pós-Graduação


1 - Apoio CAPES
2 - Apoio CNPQ
 

 
RESUMO

Temos desenvolvido atividades voltadas para a formação continuada de professores fundadas nos temas antitéticos característicos da 'imaginação científica' e da produção do conhecimento (Holton), e tratados dinamicamente através dos três momentos pedagógicos (Delizoicov e Angotti). Provocamos a discussão de distintas concepções sobre a natureza da ciência e a forma como tem evoluído a construção deste conhecimento. Ao valorizar a contribuição do viés epistemológico para a melhoria do ensino/aprendizagem de ciências e de física, assumimos as dimensões do processo e do produto e estruturamos atividades em torno do tema exemplar "energia: conservação e degradação". Como resultados podemos afirmar que estas abordagens são potentes para se exercitar o confronto de idéias e, assim, contrastar as visões oficiais unívocas prevalentes nos sistemas de ensino. Além de enfrentar a forma individual de planejamento e as tarefas didático-pedagógicas, o envolvimento dos professores está indicando para mudança e evolução do coletivo constantemente desafiado.

 
INTRODUÇÃO/CARACTERIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Nossa participação em trabalhos de investigação-ação com um grupo de professores de Física e as pesquisas realizadas atestam que problemas nas concepções/práticas dos professores de ciências naturais advindos da formação inicial e do isolamento ao longo das atividades docentes, podem, não sem dificuldade, ser enfrentados com mais possibilidade de êxito, na medida em que estes os vivam e os percebam. Como no campo pedagógico persistem dificuldades para se perceber estes problemas, contradições e necessidades de mudanças, parece que iniciativas que estimulem apenas a reflexão sobre a prática docente não garantem minimamente a transição desejada.
A esse respeito, estudos histórico-epistemológicos da ciência revelam:
- a presença, na ciência, de diversas concepções, como empiricista e racionalista (na ciência clássica) e "construtivista" (na ciência moderna e contemporânea);
- a ocorrência de rupturas entre conhecimentos anteriores e novos na ciência;
- a influência de fatores externos à ciência, tais como, aspectos sociais e filosóficos;
- a presença da dimensão subjetiva na produção do conhecimento, bem como o caráter de "verdades" provisórias, o espírito aberto para a incerteza e o embate entre teorias concorrentes.
Paralela e simultaneamente, na prática pedagógica, características presentes na ciência clássica são bastante comuns nas concepções/práticas dos professores dos níveis fundamental e médio. Contribuem fortemente para isso a formação empiricista/indutivista, a pouca ou nenhuma ênfase à ciência/física moderna e contemporânea e o próprio entendimento ingênuo e aligeirado do fazer científico.
Diante disto, ao apontar/analisar exemplos históricos ocorridos na ciência (principalmente embates), buscamos possibilidades para as desejáveis rupturas nas concepções/práticas dos docentes. Analogicamente pensou-se na vinculação da pedagogia, enquanto campo reflexivo crítico da educação, enquanto similar ao nível epistemológico para a ciência. É possível/viável sermos também "epistemólogos" no campo pedagógico. Na concepção bachelardiana, trata-se de fortalecer o vínculo entre obstáculos pedagógicos e obstáculos epistemológicos.

 
CIÊNCIA MODERNA E O FASCÍNIO EM RELAÇÃO À GENERALIDADE/SIMPLICIDADE

O que se ensina, normalmente, está restrito à perspectiva única do professor, com predominância de idéias essencialmente simplistas, ideais e homogêneas. Em lugar de questionamentos, discussões e embates, a norma é a passividade/transmissão - comprometendo o que há de mais precioso na ciência.
Partimos do pressuposto de que a participação dos professores em atividades de caráter epistemológico lhes proporcionaria maior clareza e discernimento sobre os limites e as potencialidades de sua prática e, assim, fortalecer sua formação. Para tanto, procuramos explorar determinadas concepções da ciência que possibilitariam aos professores reconhecer suas próprias concepções, bem como elucidar outros aspectos que determinam sua prática atual.
A ciência moderna, a partir das contribuições de Copérnico, que resultou em revoluções na concepção de si própria e também de mundo, e tendo Newton como "ator principal", transcendeu fronteiras culturais e ideológicas, caracterizando-se como um empreendimento com forte apelo de "unidade" entre os homens nos diferentes locais do planeta. Foram diversas realizações que contribuíram para imprimir uma certa visão desta. Para além dos citados, procuramos pôr em evidência algumas realizações de outros cientistas e/ou personagens históricos e, também, determinadas sínteses:
- Bacon consolidou a concepção empiricista. O conhecimento estava centrado nos objetos; o indivíduo, supostamente neutro, ao interagir com a natureza conseguia extrair o conhecimento dela. E, como era muito freqüente ter as mesmas percepções, deduzia-se este como verdadeiro, o que permitiu (ou levou) à idéia de que, em função das diversas regularidades observadas, a fazer generalizações;
- Descartes difundiu a concepção racionalista. O conhecimento estava "na cabeça". Se é através dos órgãos dos sentidos que conhecemos as coisas, então o conhecimento não está nos objetos, mas em nossas mentes.
- Através de metodologias que transcendem ao suposto "método científico" e de processos lógicos que a rigor não tenham obedecido estritamente às concepções indutivista ou racionalista, ciência e tecnologia desenvolveram corpos teóricos estruturados de grande alcance, embora sempre limitados. Exemplos da Física sempre são oportunos: da mecânica, da termodinâmica, da óptica e do eletromagnetismo, sempre contemplados ora isoladamente, ora em conjunto, à luz dos princípios de conservação da energia, carga, das quantidades de movimento linear e angular. Tais sínteses entusiasmaram não só cientistas, mas populações em geral, pelo menos as que tiveram contato com este conhecimento, seja na educação escolar, seja pelas vias da divulgação.
- Nos três últimos séculos, as mudanças sócio-econômicas e culturais mais amplas e profundas têm ocorrido mais ou menos associadas ao conhecimento de ciência e tecnologia. O domínio clássico que muitos resumem aos 150 da era newtoniana, parece que ainda prevalece fortemente na concepção dos docentes, passados mais de 250 anos.
A impressão que resultou daí, principalmente diante do apogeu da racionalidade, da façanha das descobertas das forças de interação entre massas, da conservação da massa e da energia e das possibilidades de se resolver problemas seculares intrincados sobre o movimento dos corpos celestes parece ter consolidado a idéia de que tudo está dado. Máquinas simples e avançadas fundadas na termodinâmica e no eletromagnetismo parecem ilustrar este domínio e fortalecer mais ainda o consenso sobre a capacidade ilimitada deste conhecimento.
A estrutura conceitual que resultou - com ênfase da aplicação da matemática na física -, levou a uma clareza de raciocínio extraordinário deixando evidente, conforme Gleiser (1997:164) "que todos os movimentos observados na Natureza, desde a familiar queda de uma gota de chuva até a trajetória cósmica dos cometas, podem ser compreendidos em termos de simples leis de movimento expressas matematicamente." Essa concepção de ciência, que iria predominar até o início do século vinte, e que conseguiu aplicar com enorme eficiência a matemática, foi pressuposto básico para fortalecer a idéia de que tudo estava pré-determinado, bastava fazer os eventuais "pequenos ajustes".
Em Bernal (1969:77) vemos que a racionalidade da ciência, no que tange à possibilidade dos indivíduos de manipular o ambiente (como manufaturar e operar instrumentos) de acordo com suas vontades, levou a uma "nova" visão da ciência - à luz da gênese moderna -, onde "objetivamente, o mundo inanimado é muito mais simples que o mundo animado, e este mais simples que o mundo social; por isso, era intrinsecamente necessário que o controle racional e, em última análise, científico, do meio, tivesse seguido precisamente essa ordem."
Sobre este aspecto, Holton (1979:11) afirma que os cientistas, desde Copérnico, compreenderam como era atraente um sistema que dispusesse das qualidades simplicidade e necessidade, e que as novas relações habituais de motivações do trabalho científico, como a descoberta de remédios/curas contra epidemias, a eficiência das máquinas, entre outras, tendem "a ressaltar o lado baconiano do legado da ciência moderna." No entanto, ele também afirma que estes aspectos não são suficientes para a compreensão da ciência.
Seguindo o exemplo dado acima, as leis da conservação da massa e da energia, que incorporam as distintas transformações no universo, muito familiar a poucos docentes e muito distante da maioria, não podem continuar pouco presente nas práticas docentes.
Com estas discussões queremos ressaltar a necessidade de, não só aprender novos conhecimentos, mas, principalmente, como lidar com os conhecimentos/concepções relativos à ciência clássica e moderna, na prática pedagógica. Aliás, uma vez que estes (as) últimos (as) são predominantes na formação dos professores, acreditamos ser esta uma condição essencial para que ocorra a transição necessária.
Seria ingenuidade de nossa parte, esperar/querer dos professores avanços significativos na sua prática pedagógica sem propiciar condições que lhes possibilitassem perceber determinadas limitações em suas formações.
Ao abordarmos estes aspectos, queremos advertir sobre alguns exageros cometidos em certos momentos históricos, tanto no âmbito da comunidade científica quanto no da comunidade escolar (principalmente nesta última). Se para os cientistas, mesmo inseridos em ambientes de pesquisa, onde a busca por novos conhecimentos é uma das suas finalidades, há dificuldades para aceitarem mudanças significativas, o que esperar dos professores, que não dispõem dessas condições?
Não por acaso, nem intencionalmente, os professores permanecem restritos à simples exploração empírico-indutiva misturada a uma racionalidade simplória em muitas das aulas que ministram, principalmente naquelas em que são realizadas atividades experimentais. Ainda "presos" a "determinados paradigmas", não compreendem que estes aspectos são insuficientes para a aprendizagem de novos conhecimentos e para explicar as teorias. Chalmers (1993:62), por exemplo, afirma que "não se pode ver uma distinção acentuada entre a observação e a teoria porque a observação ou, antes, as afirmações resultantes da observação são permeadas pela teoria." Além disso, a riqueza que se constitui o processo de produção dos conhecimentos científicos também envolve outros elementos.

 
CONCEPÇÕES/EMBATES NO ENFOQUE DA CIÊNCIA COMO CONSTRUÇÃO HUMANA


O Caráter Subjetivo

Com o desenvolvimento da ciência madura e da epistemologia neste século, a racionalidade perfeita e imutável, predominante no século passado, foi posta em questionamento. Elas têm "destronado" o conhecimento objetivo por essência e permitido demonstrar que a idéia de "verdades absolutas" acerca do conhecimento científico, mais marcante na época de predomínio da ciência moderna, é difícil de se sustentar, mesmo que esta visão esteja na própria raiz do pensamento formal.
Se a ciência pode ser relativizada, conseqüentemente a "razão" também o passa a ser. Se a "razão" impulsionou a Ciência, ela também se fez ao fazer ciência, ou seja, seus princípios lógicos também sofreram mudanças, com a transformação da Ciência. Bachelard afirma que
"... todo real progresso no pensamento científico necessita de uma conversão. Os progressos do pensamento científico contemporâneo determinaram transformações nos próprios princípios do conhecimento. [...] Os quadros mais simples do entendimento não podem subsistir em sua inflexibilidade, se deseja avaliar os novos destinos da ciência." (Bachelard, apud Chrétien,1994:41).

Em Bombassaro (1994:4) vemos que a sobrevivência das leis e teorias para além de fatos culturais e históricos, para além do trabalho dos próprios cientistas, "ganha um caráter de universalidade e permite contar a história de nossos erros e da nossa ignorância." Esta característica da ciência como uma empreitada humana - e não especificamente de algum ou outro cientista em particular -, como uma construção que não está isenta de erros e, portanto, é limitada e permeada de discussões/embates, também é marcante em Einstein:
"A ciência, considerada um conjunto pronto e acabado de conhecimentos, é a mais impessoal das produções humanas; mas, considerada como um projeto que se realiza progressivamente, ela é tão subjetiva e psicologicamente condicionada como qualquer empreendimento humano."(Einstein, apud Thuillier, 1994:227)

A educação escolar, o convívio religioso (judaico e católico), a permanente desconfiança em relação "aos ensinamentos oficiais" e as experiências na Suíça ("lugar de encontro das forças revolucionárias da Europa") possibilitaram a Einstein uma mente aberta o suficiente para extrapolar os conhecimentos de sua época - e confiar em pressupostos que não se restringem aos aspectos lógicos e racionais, tão marcantes na Física Moderna.
"Os conceitos físicos são livres criações do espírito humano e não são, como se poderia acreditar, determinados exclusivamente pelo mundo exterior. No esforço que fazemos para compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco ao homem que tenta entender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem como abrir o estojo. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo que ele tornará responsável por tudo o que observa, mas nunca estará seguro de que sua imagem seja a única capaz de explicar suas observações. Nunca estará em condições de comparar sua imagem com o mecanismo real, e nem mesmo pode se representar a possibilidade ou o significado de uma tal comparação" (Einstein, apud Chrétien,1994:43-44).

Esse tipo de visão da ciência parece ter adquirido maior impulso com epistemólogos, como Kuhn e Holton que, para caracterizarem a ciência, recorreram não só a elementos históricos, mas também a aspectos externos ao desenvolvimento desta. Kuhn, por exemplo, ao refletir sobre as principais críticas feitas à sua obra (Revoluções Científicas), principalmente relacionadas ao que denominou de ciência normal, aponta diversos exemplos historicamente ocorridos no processo de construção de conhecimentos da humanidade.
Na grande mudança da epistemologia a partir de Kuhn está imbricado o aspecto interpretativo na ciência. A busca pelos significados das descrições do que era fazer ciência em cada época facilitou a percepção das teorias científicas como construções provisórias.
Kuhn (1991:25) aponta para uma reflexão séria, epistemológica para além da historização (de anedotas e cronologia) para construir uma nova história da ciência. Afirma que precisamos descrever as maneiras pela qual cada um dos episódios marcantes dentro da ciência (principalmente os casos revolucionários) "transformou a imaginação científica, apresentando-os como uma transformação do mundo no interior do qual era realizado o trabalho científico."
Nesta perspectiva, e tratando da análise temática, Holton, além de valorizar a contribuição individual, subjetiva (humanística), dá ênfase a temas antitéticos (embates ocorridos em torno das formulações, como contínuo/descontínuo, análise/síntese). Como exemplos podemos citar as "opções temáticas" dos cientistas em favor de um dos pólos temáticos: carga elétrica elementar de Millikan, carga elétrica contínua ou subelétrons de Ehrenhaft, a luz enquanto partícula - a luz enquanto onda, a hipótese do éter - a refutação do éter...

3 - Ver Thuillier, 1994:245

Dos Embates a Novas Perspectivas
A ciência, ao longo de sua história, tem sido "palco" de muitos conflitos; alguns deles parecem perdurar sempre, como os pressupostos temáticos antitéticos do contínuo versus o quantizado. Há quem afirma que ela é, por natureza, uma atividade conflituosa. É possível indicar, por exemplo, conflitos entre elementos da própria ciência, entre ciência dos fatos e conhecimentos religiosos, a exemplo da dimensão temática proposta por Holton.
Na medida em que formos "portadores" do conhecimento científico é imprescindível a tomada de consciência desses conflitos, até para não continuarmos a "ensinar" uma ciência isenta de polarizações. Gleiser (1997:359-62) afirma que vivemos numa realidade bipolar, que na organização do mundo em nossa volta a polaridade pode ser bastante útil.
Para exemplificar a questão dos conflitos ocorridos na ciência, apontamos discussões/embates que permearam algumas formulações científicas:

a) As discussões sobre Geocentrismo e Heliocentrismo revelam que as concepções formuladas nesses paradigmas (Kuhn) não vieram a atender aspectos internos da ciência - tudo que foi produzido não está na natureza. A concepção geocêntrica do universo teve sua validade em determinada época, visto que estava de acordo com certas leis específicas, válidas então. De acordo com Bombassaro (1994:3) "valeu enquanto durou aquela concepção de mundo que a defendia. Valeu dentro dos limites de uma determinada época de nossa cultura, de nossa civilização, onde tais leis eram aceitas e defendidas como invioláveis e infalíveis." Assim, esta concepção foi substituída pela Heliocêntrica, que afinal, atualmente está longe de ser reconhecida como correta.

b) Outra questão que vale a pena ser explorada é a polêmica sobre a vinculação da Experiência de Michelson-Morley com os postulados do princípio da Relatividade Restrita. Thuillier (1994:235-8) ressalta aspectos polarizados sobre a polêmica.
· Em defesa dessa vinculação:
* Poincaré declara ser o princípio da relatividade um fato experimental, no mesmo sentido que as propriedades dos sólidos naturais; como tal está sujeito a incessante revisão; como princípio, é no máximo 'uma convenção sugerida pela experiência'. Lembra ainda que os físicos podem muito bem ignorá-lo, sobretudo se querem conservar seus 'velhos hábitos'.
* Millikan considera que "a teoria da relatividade restrita tem sua origem essencialmente numa generalização da experiência de Michelson".
* Joseph Petzoldt afirma que a "teoria einsteiniana depende inteiramente do resultado da experiência de Michelson e pode ser derivada dele".
· Contrárias à referida vinculação:
* Einstein afirma ter formulado o princípio da relatividade não baseado em dados experimentais; que estava praticamente convencido da validade deste princípio antes de conhecer a experiência de Michelson e seus resultados. "Em meu combate pessoal, a experiência de Michelson não desempenhou nenhum papel, ou pelo menos nenhum papel decisivo". Einstein chegou a externar que "pensava visualmente" e que uma "espécie de devaneio experimental" estimulou por anos as suas reflexões.
* Segundo Thuillier (1994:244), "o procedimento crítico que engendrou a teoria da relatividade" foi possível face à "real autonomia intelectual" de Einstein. Para além da atividade lógica racional ele recorreu a outros elementos (como emocionais, psicológicos, imaginativos, convicções filosóficas, e até místicos - "sentimento religioso cósmico") em sua imaginação científica.

c) com o Princípio da Incerteza, Heisenberg e outros ampliaram os domínios do descontínuo, em oposição a determinadas certezas até a época, em favor do contínuo. Em Holton (1979:30-2), vemos que, com esse princípio, podemos atribuir um caráter randômico (jogo do acaso) ao movimento de um satélite em torno de um planeta, ao contrário das equações de movimento que determinam os termos de uma seqüência simples e de causalidade linear (ponto por ponto).
No entanto, nem todos compactuavam dessa proposição. Einstein, Schrödinger e Planck, posicionaram-se contrários a esta idéia. "Jamais aceitaram como comprovado o primado do tema do probabilismo fundamental na natureza física." Einstein, num determinado diálogo com Heisenberg, dizia concordar "em que qualquer experiência cujos resultados possam ser calculados por meio da mecânica dos quanta se processará como você diz, mas mesmo assim tal esquema não pode ser uma descrição final da natureza."
A expressão de Einstein - "Deus não joga dados" - reflete a sua crença numa rigorosa determinação dos fenômenos naturais, fator que lhe dificultava reconhecer a validade da mecânica quântica, mais especificamente "o modismo estatístico" defendido por Born, Heisenberg, Pauli e, sobretudo seu principal interlocutor, Bohr. De acordo com Thuillier (1994: 232), Einstein "achava um absurdo que um corpúsculo pudesse deixar de ter um comportamento totalmente previsível."
As idéias de Einstein, para além da abordagem conceitual - da mecânica quântica e da relatividade -, são exemplos marcantes no sentido de explorar o conhecimento científico sob outro viés e, ao mesmo tempo, reconhecer as limitações tidas nestes âmbitos. Einstein acreditava que sua fidelidade ao contínuo nascia não de um preconceito, mas do fato de não ter sido conseguido imaginar algo orgânico para substituí-lo. Holton (1979:34) afirma que há limites inerentes à imaginação científica e que devemos estar preparados para as críticas daqueles que estão afligidos, não com nossos temas, mas com seus antitemas.
Prigogine (1991:159), ao se referir à termodinâmica dos sistemas complexos, alerta sobre a crescente incerteza que paira em torno destes. Afirma que os nossos meios de observação são imperfeitos.
"Em vez de poder reconhecer no devir irreversível das coisas o análogo do devir que o constitui a si mesmo, o observador tem de admitir que a natureza, estranha a esse devir, limita-se a remeter-lhe a imagem do crescimento da sua própria ignorância; a natureza é muda, e o devir natural, longe de falar ao homem do seu enraizamento no mundo, é apenas o eco dos empreendimentos humanos e de seus limites."

d) Podemos ver, na literatura existente, diversos outros conflitos ocorridos na ciência, tais como as discordâncias entre Millikan e Ehrenhaft; Newton e Huygens já citados. Interpretações oponentes entre físicos britânicos e alemães acerca dos "raios catódicos" investigados por J.J.Thomson; os debates e controvérsias sobre geração espontânea, desenvolvidos entre Félix Pouchet e Louis Pasteur.
Ora por desconhecimento, ora por decisões em favor das teorias vencedoras, docentes/pesquisadores ao conduzirem disciplinas de graduação, ignoram as diferenças e reforçam, implícita ou explicitamente, os "valores" da ciência clássica. Desdobramentos desta formação junto aos materiais didáticos e aos procedimentos e posturas em sala de aula do ensino médio e fundamental, não podem ser alternativos aos da formação inicial.
Em tempos de reformulação curricular, é bastante oportuno e pertinente a inserção destes assuntos sobre ciências paralelamente aos assuntos de ciências nos currículos dos cursos de licenciaturas e de bacharelado, não só de Física, mas de todas as áreas afins.

 
A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES E SUAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Parte significativa dos professores, com sua prática de repetir o mesmo ano após ano, longe de novos conhecimentos, apenas vão se tornar mais hábeis de fazer a mesma coisa e de reforçar as suas concepções, o que dificulta nosso grau de convencimento para sua inserção engajada em novas perspectivas pedagógicas. Até mesmo os cursos de licenciatura não têm apresentado avanços significativos na implementação de novas alternativas, principalmente as direcionadas para um ensino mais progressista, em que pesem nossas inúmeras pesquisas em ensino de ciências/física.
Entre os fatores que impõem limitações, a ponto de não resultar em mudanças significativas ou em novas perspectivas, podemos destacar, a pouca exploração de aspectos histórico-epistemológicos da ciência e o próprio entendimento do fazer científico. Não dá para ignorar que a ciência moderna - conhecimento científico que os professores melhor "dominam" -, apoiada por idéias empiricistas e indutivistas na sua origem e permeada pela idéia da simplicidade e necessidade, resultou num caráter continuísta e de uma perfeita operacionalidade, independente do sujeito. Mesmo na ciência contemporânea, é de praxe se apresentar os produtos ou os resultados (como e = mc2), sem mencionar o processo e, menos ainda, o papel do cientista (seus sentimentos, "elocubrações", ...) presente nas construções.
Questões como estas traduzem alguns porquês da pouca ênfase dada à física moderna e contemporânea e a prevalência das explorações apoiadas no simulacro do pretenso formalismo (ou formulismo) matemático. Em virtude da ausência dos embates históricos (como os tidos entre Einstein e Bohr sobre o determinismo versus o indeterminismo), o conhecimento novo é visto simplesmente como um aprimoramento, uma reformulação do antigo, distante de uma revolução ou mutação.
Holton (1979:209), ao abordar a pesquisa de Anne Roe sobre centenas de importantes cientistas, deixa claro o quase total desprezo destes pela divulgação do fazer dos cientistas e pelas questões sociais, porque "embora essas relações também existam entre eles, são habitualmente mais obscuras e a técnica de relatar os resultados científicos serve antes para esconder o homem do que para revelá-lo".
Neste aspecto, os livros textos e os manuais instrucionais utilizados pelos professores conseguem reproduzir de forma bastante fiel o que ocorre com a veiculação do conhecimento científico exitoso, sempre em favor da ciência clássica, contribuindo para sua imperativa divulgação, reprodução e/ou transposição. Porém, continuam a reforçar uma imagem distorcida do que hoje se reconhece como "fazer ciência", mesmo que consideremos o relativismo e as diferenças de posição entre historiadores e epistemólogos. Recentemente, passamos a conviver com as novas possibilidades fornecidas pelas mídias eletrônicas, o processamento de imagens e ao tratamento mais aberto, menos sisudo, do conhecimento científico. Contudo, a oportunidade oferecida poderá ser apenas mais um veículo poderoso de reforço às velhas concepções que desejamos superar. Cabe utilizar as mídias para as mudanças de rumo tanto dos conteúdos de e sobre ciências: clássicos, modernos e contemporâneos, como de metodologias plurais, tradicionais ou novas, com atividades presenciais e a distância.
A história da ciência nos fornece inúmeros indícios do quanto é difícil mudar concepções "enraizadas" e aceitar e compartilhar novas idéias. Atribui-se a Planck a máxima que condiciona a mudança das teorias à morte dos cientistas mais velhos, pois uma teoria nova, alternativa à vigente, parece ser muito mais aceita pelos cientistas jovens. Com isso, não sugerimos excluir os professores mais velhos, mesmo porque há nítidas distinções entre a prática pedagógica e a dos cientistas. Mesmo assim, não podemos nos iludir de que mudar de concepção seja algo bastante fácil.
Se os epistemólogos e os próprios cientistas tiveram e ainda têm dificuldades em chegar a idéias comuns sobre o que é fazer ciência, ou sobre como se desenvolve a ciência, como exigir dos professores alguma clareza e convicção em suas atividades com alunos? Será que os professores têm idéia do que significam fatores externos em relação ao que ensinam? Consideram que a compreensão de seus alunos sobre algo é função, também, de suas pré-concepções e mesmo de valores?
A história da ciência nos mostra que é ingenuidade do professor pensar que passando (transmitindo) simplesmente os conteúdos científicos, possibilitará a compreensão dos mesmos. Para Robilotta (1988:17), essa ciência excessivamente lógica, tem deixado transparecer uma imagem falsa. "Ao identificarmos o processo ao produto, estamos afastando dela os estudantes. A apologia da lógica torna a ciência sobre-humana aos olhos dos estudantes, superior às possibilidades dos mortais."
Holton, ao tratar do aspecto pessoas versus coisas, também aponta para problemas na prática pedagógica, como o ensino "reprodutor" - a verdade está no professor -, onde parece ser reforçada a concepção de ciência como "coisa estática" ao invés do aspecto da construção. A ênfase nos aspectos lógicos e experimentais, excluídos do fator psicológico (sentimento), reforça a visão da ciência como algo, de certa forma, alheia ou totalmente independente do ser humano, ficando assim, apenas a questão de se optar ou não por ela. Além disso, em relação a inovações curriculares reafirma (1979:216) a necessidade de se "colocar pelo menos um mínimo de história da ciência, epistemologia e discussão do impacto social da ciência e tecnologia no material educacional utilizado nas aulas de ciência."
Acreditamos que recorrer a aspectos histórico-epistemológicos da ciência e debater temas antitéticos constituem-se fontes de visões alternativas para o ensino. Eles constituem opções para gerar o confronto de idéias e, assim, contrastar as visões oficiais presentes nos sistemas de ensino.
Para o trabalho que contempla as dimensões aqui sustentadas, é fundamental a atenção constante à tensão essencial, categoria kuhniana que trata do conflito entre o antigo e o novo. O antigo que luta para se manter e o novo para conquistar seu lugar. Em termos pedagógicos, podemos admitir que o ensino/aprendizagem consiste numa luta incessante entre a formação do pensamento dogmático e o crítico.
Com isso procuramos sustentar a questão da importância de envolver os alunos de graduação recém formados, bem como os professores, em práticas de formação continuada, principalmente se quisermos que acompanhem as evoluções/transformações que ocorrem não só nos modelos de ciência que utilizam, mas principalmente, no trabalhar dos modelos para tornar o mais dinâmico/interativo sua prática pedagógica.
Atividades de pesquisa e extensão vem sendo desenvolvidas sob nossa coordenação/participação, a partir de meados desta década, em diversos cenários, com docentes em formação inicial (nas disciplinas de Metodologia de Ensino e de Prática de Estágio Docente/UFSC e na abordagem de temáticas de ensino com alunos do MST, na UNIJUÍ/RS) e continuada (no Programa Pró-Ciências/Física do estado de Santa Catarina e também com um grupo de professores da área de Ciência Naturais: Física, Química e Biologia da Escola de 10 e 20 Graus Francisco de Assis - EFA/UNIJUÍ/RS). Textos elaborados em torno de temáticas vinculadas a teorias alternativas sincrônicas e assincrônicas - conservação da massa da ciência clássica; conservação e degradação da energia da ciência contemporânea -, a exemplo das Combustões, constituem parte do instrumental didático destas atividades.
Além da elaboração de textos didáticos, com e pelos professores, para serem utilizados nas aulas de ciências, convém auxiliá-los a disponibilizar outros materiais didáticos e paradidáticos tradicionais e/ou multimídia; textos impressos tais como: Física (GREF: textos impressos para professores e material para alunos disponíveis na Internet), Física e Metodologia do Ensino de Ciências (Delizoicov e Angotti); GAIA (Lutzemberger), Energia e Meio Ambiente (Branco); sites na Internet, como os disponíveis na página www.ced.ufsc.br, www.fsc.ufsc.br; programas educativos da área de Ciência (como RTC e TV Futura); vídeos e coleções de CD-Room (a exemplo das coleções Britannica, National Board of Canada e Discovery), devidamente selecionados com os professores, podem ser bastante úteis e desafiantes.
Diante da oferta explosiva de materiais didáticos com recursos multimídia, os professores deverão incorporar em sua formação critérios seletivos, já que muito do ofertado carrega, ainda que com riqueza de imagens e simulações, visões de ciência bastante ortodoxa.
Para além de se constituírem um componente essencial da formação permanente dos professores, que infelizmente permanecem ausentes na grande maioria dos currículos de formação inicial - Licenciaturas -, as discussões de fundo epistemológico servem, também, para buscar e fortalecer critérios que auxiliem os professores a selecionarem e usarem criticamente os diversos materiais disponibilizados.

 
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Páginas Internet:
www.ced.ufsc.br | www.fsc.ufsc.br | www.if.usp.br | http://axpfep1.if.usp.br/~gref/ | www.if.ufrgs.br/~kepler/

 
ABSTRACT

We have developed activities directed to teacher's continued formation based on the antithetic themes characteristic of "scientific imagination" and of the knowledge production (Holton), besides dynamically treated through the three pedagogic moments (Delizoicov and Angotti). We brought about a discussion of distinct conceptions about the science nature and the way of knowledge we have built. Valuing the contribution of the epistemology slant, for the improvement of the teaching/learning of science and of physics, we assume the extend of the process and of the product and organized activities about the copy theme energy: conservation and degradation. As result we can assure these options are able to exercise the confront of ideas and so, contrasting the unique official vision prevailed in the teaching systems. Besides facing the individual form of planning and the pedagogical tasks, the involvement of the teachers is indicated to change and to improve the work group constantly challenged.